TESTE

No final daquela rua, no bairro de Boa Viagem, na cidade de Tamarindo, em que morava a Velha Bé, a Dona Cota e o sol não vinha, havia, bem mal construída, a casa do pequeno Klaus.

Ninguém sabe ao certo se aquele homem de baixa estatura se chamava Klaus de verdade, afinal de contas, malemal respondia o bom dia de toda a vizinhança.

Na cabeça das crianças, surgia todo tipo de explicação: deve ser um bruxo! – pensavam algumas. Pra outras, nem língua o homem tinha. Não era velho, não era moço, não era rico, mas também não era pobre. Não era uma casa assustadora, como se fosse mal assombrada, dessas de filmes de terror, e também não era uma casa colorida aparentando ser feliz.

Como absolutamente tudo naquela região da cidade era acinzentado, pela falta dos raios luminosos do astro maior, não se podia dizer que aquela casa, em que vivia Klaus, era um tipo de house. Porque house, pra quem não sabe, é uma casa, em inglês. E a casa de Klaus era tudo, menos uma casa de verdade.

Dona Cota, amargurada com a vida em uma cidade sem sol, por vezes resmungava que Klaus morava em um amontoado de tijolos:

– Aquilo mais parece uma caverna; só que não é de pedra, é de tijolo!

Nas conversas sobre o muro que dividia os dois lotes, a Velha Bé e a Dona Cota rasgavam o verbo:

– Este Klaus só pode guardar segredos! – dizia uma.

– Segredos cabeludos! – respondia a outra.

E numa dessas, de fofocar entre duas comadres, certo dia o menino Heitor, filho da Lilica e do Glauber, escutou. O menino, com seus treze anos e barriguinha saliente, chegou à Escola dos Meninos Malcriados, onde estudava, e dissipou a informação:

– Sabe o Klaus?! Aquele que mora no fim da rua! Pois me disseram que tem segredos cabeludos! Tão cabeludos que é possível fazer tranças!

O resto da turma soltou um ooooh!!! e dali pra frente a curiosidade sobre o homenzinho só aumentou.

Todo mundo falava da vida de Klaus. Do Oiapoque ao Chuí! Do Japão ao Brasil. Todo mundo dizia explicações para que ele não respondesse nem mesmo um Bom dia! da vizinhança.

O que ninguém sabia era que Klaus estava pronto para ir viajar. Não seria uma viagem normal, como a que se faz nas férias para uma praia, um sítio ou a casa de uma tia. Ele estava indo trabalhar em um circo. Ia embora de Tamarindo, e já tinha até comprado sua passagem.

Pegaria o trem das 20:15, seguiria pelo Vale das Águas Correntes, depois atravessaria a Cidadela do Sal Salgado, onde desceria na estação, esperaria o próximo trem, que provavelmente chegasse só no amanhecer do dia seguinte, percorreria toda a estrada de ferro entre as casinhas coloridas… e ufa! Enfim estaria lá… onde o próximo trem o esperaria para leva-lo ao Grande Circo dos Irmãos Espoleta!

Como em Tamarindo aconteciam roubos e mais roubos nas casas que aparentavam estar vazias, para garantir que seus poucos móveis e enfeites (e muitos livros) ficassem seguros, Klaus não teve dúvida: meteu tábuas de madeiras reforçadas em todas as portas e janelas, pregando-as de modo que impedissem a entrada de qualquer ladrão.

Deixou ali apenas uma portinhola, bem pequena, por onde poderia sair, e por onde nenhum grandão, poderia entrar.

Próximo ao horário de sua partida, Klaus se vestiu da forma mais elegante que pudesse. Usava um terno xadrez em preto e branco, e uma gravatinha borboleta preta e branca, com uma calça de triângulos pretos e brancos, uma cartola preta e branca e sapatos. Um preto. O outro branco. Na sua pequena mala de viagem quadrada, meia dúzia de roupas dobradas. Não queria levar muita coisa, talvez na tentativa vã de deixar seu passado pra trás.

Tão logo escureceu, o apito do trem se ouvia de longe.

Da janela de sua casa, Heitor, o filho de Lilica e Glauber, ao ouvi-lo dizia:

– Veja mãe! Alguém está chegando!

Não sabia quase nada da vida esse menino…  Alguém sempre estava chegando. E alguém sempre estava partindo.

Na Estação de Trem

Algumas vezes, não sempre, quando se está ansioso, esperando algo que se quer bastante, é comum que nos esqueçamos das coisas. Saber que estava indo embora para começar uma vida nova, mesmo que ainda estivesse na Estação de Tamarindo, deixou Klaus muito feliz. Tão feliz que o pequeno homenzinho decidiu comer um grande e delicioso pastel de queijo na lanchonete do lugar. “Como é grande! Como é delicioso!”, pensava ao olhar o quitute preparado pela Dona Constança, a avó de Heitor, que era filho de Lilica e Glauber.

Coisa engraçada, né?! Como antes nunca havia provado o pastel de Dona Constança, sendo ela a dona da lanchonete da Estação de Tamarindo, uma cidade em que todos se conhecem e sabem dos talentos uns dos outros?

Olhando o enorme pastel recheado de vento, com um mísero pedacinho de queijo, com o coração carregado de es-pe-ran-ça, sabendo que enfim realizaria seu sonho de trabalhar com elefantes naquele circo maravilhoso dos Irmãos Espoleta, ele divagava em pensamentos coloridos. Parece que até uma única estrela brilhante havia no céu.

Com sua mala quadrada apoiada no chão, olhando ao redor, Klaus parecia esboçar seu primeiro sorriso dos últimos tantos meses. Alguma coisa naquele pastel lhe parecia mágico. Provavelmente se lembrava do gosto dos pastéis que sua finada mãe lhe fazia na infância. Lembrava do fogão que havia na cozinha da casa em que viveu quando criança, da panela de tampa torta sobre ele, do cheiro e do sabor da comida gostosa que lhe era servido. Lembrava também da casa cheia de outras crianças que eram suas amigas. Lembrava da bola de pelotão que jogava na rua sem movimento, até que anoitecesse uma voz lhe gritasse de dentro da casa um

– Klaus, é hora de fazer tarefa! Entre!

Ah, aquele momento era lindo, marcado por tantas boas recordações, tantas belezas vividas. Klaus dizia pra si mesmo, dentro de sua cabeça:

– Veja, Klaus! Nada é pra sempre, por isso você deve aproveitar tudo que puder, porque na curta viagem da vida, é a única bagagem que se levará e a saudade.

Ele tinha lido em algum livro, mas não lembrava qual era, algo como:

A vida é uma viagem. Pena estar aqui só de passagem…

Pastel comido, lembranças lembradas, naquela hora deveria lavar suas mãos, e ir para a porta em que embarcaria naquele trem.

Como se cantarolasse, e reprimisse uma dancinha qualquer, o homenzinho procurou a plaquinha do banheiro, sentiu o cheiro do sabonete de erva doce, lavou calmamente suas mãos, secou com apenas duas folhas de papel e puxou a maçaneta do banheiro para sair.

– Parece que está emperrada. Ei, parece que está emperrada! – disse sozinho.

Apressado, tentou forçar a porta, colocando inclusive o pé para abri-la… sem nenhum sucesso.

Quando era 23:00, um distinto senhor, que também usava cartola, abriu a porta, de fora pra dentro. Ele foi fazer xixi.

Klaus estava arrasado. Como pôde ter perdido o trem? Como pôde ter ficado tanto tempo distraído, deixando escapar seu grande sonho?!

Um novo tem para o Grande Circo dos Irmãos Espoleta só sairia dali a seis meses. Pouca gente ia pra lá, e por isso, os maquinistas faziam poucas viagens com esse destino.

Frustrado, triste e desanimado como antes, o homenzinho sentou-se em um banco, ficando com as pernas longe do chão, olhou para o relógio e percebeu que não seria possível voltar no tempo.

Ele teria de encontrar uma solução, mas Klaus nunca foi bom o bastante nisso. Reaja Klaus! Reaja! Deve haver alguma coisa a se fazer.

Apoiou-se no balcão de Dona Constança e disse:

– A senhora saberia, gentilmente, dizer-me como posso pegar um novo trem que me leve até a próxima estação?

– Vixe! Demora bastante. Só se muda de estação em média de 3 meses em 3 meses. – respondeu.

Klaus caminhou cabisbaixo até um banco de madeira, sentou-se e profundamente suspirou. Ele não queria voltar até sua casa no fim do bairro de Boa Viagem no fim daquela rua. Mas não seria possível esperar por longos três meses, aproximadamente, pela chegada do próximo trem que o levaria para a próxima estação. Klaus sabia que deveria deixar de lado todo o seu orgulho, juntar sua mala quadrada e atravessar a cidade de Tamarindo, sob os comentários maldosos do menino Heitor, que vinha a ser filho de Lilica e de Glauber, da Velha Bé, de Dona Cota. Mas saber que deve, não significa necessariamente querer.

Enquanto pensava em seus sonhos que demorariam ainda mais para acontecer, analisava o pouco movimento naquele lugar, sendo interrompido apenas por uma grande, muito grande, moça de maria-chiquinha nos cabelos:

– Com licença senhor, com licença… é… é que estou procurando pela plataforma de letra “Ó”, afinal de contas dentro de poucos instant… – fora interrompida por Klaus.

– É aqui mesmo, ó. Ali em cima está escrito “Ó”.

– Oh! Puxa, que maravilha! Eu estou muitíssimo animada, porque hoje, finalmente hoje, depois de uns três meses, vou conseguir pegar o trem que me levará para… – mais uma vez o homenzinho lhe interrompeu.

– Que bom! Sua hora chegou. Eu espero que seja muito feliz, lá, seja lá onde for.

– Oh, claro! Sem dúvida serei ainda mais feliz. É que será a grande viagem da minha vida. Eu vou! E você devia em algum momento fazer essa viagem… Será lind… – Klaus pela terceira vez resolve interromper.

– Vá. Quem sabe chegue a minha hora também. Mas hoje não foi… – respondeu juntando sua mala quadrada, seguindo em direção à porta de saída da Estação de Tamarindo. No caminho ele ouviu a grande grandíssima moça falando baixinho.

– Ahhhh que felicidade. Quantas histórias poderei contar. Vou mandar cartões postais! Muitos cartões, daqueles com fotografias bonitas. Vou mandar cartas dizendo que estou muito bem, e que a vida está muito melhor. Vou falar que tudo é maravilhoso, que as coisas estão finalmente dando certo. Claro que sim! É o que eu farei. Porque não há como as coisas darem errado no Grande Circo dos Irmãos Espo..

Antes mesmo que terminasse de dizer a frase completa, Klaus largou sua mala quadrada e correu para mais perto.

– O que você disse, grande grandíssima moça?!

 – Eu estava dizendo exatamente assim: Ahhhh que felicidade. Quantas histórias poderei contar. Vou mandar cartões postais! Muitos cartões, daqueles com fotografias bonitas. Vou mandar cartas… – ao ser interrompida por Klaus.

– Sim, sim, sim… Esta parte eu ouvi. Eu quero saber o que disse sobre o Grande Circo dos Irmãos Espoleta.

– O senhor precisa parar com essa mania feia, senhor homenzinho. É muito feio interromper as pessoas o tempo todo. – disse a moça.

– Me perdoe, grande grandíssima moça. É que eu também preciso pegar o trem para o Grande Circo dos Irmãos Espoleta. Mas fui informado que só é possível mudar de estação a cada três meses…

– Sim! É isso mesmo. Mas eu estou pronta para pegar o avião. Tão logo a aeronave pouse por aqui nós vamos sair voando pelos céus azuis, e mesmo se enfrentarmos as turbulências (que podem existir, porque sempre existem turbulências), chegaremos ao meu lugar… um lugar com sol, com coisas muito coloridas, trapezistas coloridos que nos farão perder o fôlego, contorcionistas fantásticas e palhaços engraçados!

Klaus por alguns instantes pensou em encontrar uma forma sutil e que não ferisse de dizer que aquilo ali era um Estação de Trem. E não um aeroporto.

– Veja! Parece que pintaram por esses dias esta grande placa sobre a entrada desta ESTA-ÇÃO DE TREEEEEEEM. – disse

– Oh! Sim, mas eles provavelmente não terminaram ainda. – respondeu a moça.

– Claro que sim! A tinta está novinha, as letras estão bem desenhadas…

– Não! Ali ainda não está falando nada sobre os voos que acontecem neste AE-RO-POR-TO.

– Com toda a certeza a senhora está enganada. Eu moro nesta cidade e sei que aqui nunca… nunquinha… desceu um único avião. Nunca. – dizia Klaus enfático.

Sem dar muita bola, a moça resolveu desconversar.

– Muito prazer, eu sou uma contadora de histórias de amor. Você tem alguma para me contar? – disse estendendo a mão para cumprimenta-lo.

– Não senhora, infelizmente eu não tenho uma única história de amor para lhe contar. Meu nome é Klaus. Muito prazer em conhecê-la.

– O senhor não tem NENHUMA história de amor para me contar? Nenhuma?

Klaus preferiu não responder. E na tentativa de desviar do assunto, novamente soltou a sua mala quadrada, sentou no banco, e preferiu ver onde essa história de aeroporto iria chegar. Caso ele estivesse enganado, e por ali pousasse um avião com destino ao Grande Circo dos Irmãos Espoleta, ele entraria junto, e resolveria seu problema.

Algumas horas depois, ainda observando o entusiasmo da grande grandíssima contadora de histórias de amor, perguntou:

– que horas é o voo?

– pois veja, Sr. Klaus! Na passagem, provavelmente por um erro durante a impressão, não apareceu aqui. Parece ter ficado borrado. Mas eu tenho certeza que logo ele chegará.

Será que esta moça era maluca? Doidinha? Porque ela aguardava com muita certeza por um avião que não poderia pousar em uma estação de trem, com um bilhete que não aparecia o horário, para ir a um circo que tinha apenas uma vaga de trabalho (e que já estava definida: seria de Klaus)!

O dia começava a amanhecer. Não era um dia bonito, afinal em Tamarindo, o sol não aparecia. Era cinza, como sempre. Klaus estava com sono. Dona Constança já havia fechado a lanchonete. Só havia os dois no grande salão de embarque. Lá fora, só uma névoa típica dos dias de inverno. O silêncio era daqueles que fazia eco na cabeça da gente. Nada. Nadica de nada.

Se a expressão do homenzinho era de frustração, a da jovem grande grandíssima contadora de histórias de amor não! Ela estava redondamente feliz.

– O senhor gosta de música, sr. Klaus? – disse ela, retirando um pequeno violão de dentro da sacola.

 – Sim! Músicas são muito importantes, principalmente em um dia como esse.

– Então eu vou cantar e tocar. Observe! Observe. Mas prepare-se, porque será uma linda canção…

Um pedaço de sorriso se abriu no rosto dele, que até levantou do banco de madeira. E para enorme surpresa de Klaus, ela posicionou-se com o instrumento que quase não se via diante de sua altura, com a mão esquerda apertou as cordas, e com a direita fez um mísero blééééééém.

O homenzinho esperava a continuação. Mas a moça logo abaixou sua cabeça para agradecer, como se tivesse apresentado tudo a uma plateia de milhares de pessoas e esperou os aplausos.

– É só isso? – reclamou.

– Ora, Sr. Klaus! Eu dei o melhor de mim. E fiz uma linda música que ecoou pelos quatro cantos deste lugar. E o senhor me pergunta se é apenas isso? Quem não sabe nada é o senhor. Minha música foi incrivelmente maravilhosa.

– Mas sra. contadora de histórias de amor, a senhora só fez um blééééééém. Não fez nada além disso. Isso não é música!

– Não é música?! O sr. é muito mal educado. E eu já devia ter percebido isso. Não tem ouvidos suficientes para entender a beleza e leveza das músicas de uma contadora de histórias de amor. E o senhor precisav…

Um tumulto começou a ser ouvido entrando na estação. Toda empiriquitada com correntes e pulseiras de ouro, com seis ou sete ou oito rapazes com ternos pretos, não se entendia exatamente o que ela dizia. Mas percebia-se, por todas as bagagens que carregava, que faria uma longa viagem.

– Tenham mais cuidado com isso, rapazes. Cuidado com essa caixa. E cuidado com esse quadro. – alertava-os. – Vocês não fazem ideia de quanto custa esse quadro.

Longe e baixinho, Klaus perguntava para a contadora da história de amor:

– Será que ela é rica e famosa?

– Você não conhece a Madame Berenice?

– Nunca vi mais gorda.

– Mas ela é bem magrinha.

– Sim, eu quis dizer que nunca a vi.

– Ela é dona de quase metade do mundo todo. Não tudo, mas quase a metade.

Klaus começou a observar o que acontecia. Era um festival de “não coloque no chão”, “não chacoalhe essa caixa”, “não amasse a sacola”.

Enquanto o alvoroço se fazia, e mais perto da hora do almoço ficava, naquele jogo de “cuide disso, cuide daquilo”, do outro lado da cidade estava Maria Quitéria. Nós já falamos de Maria Quitéria?! Não?!

Como pudemos nos esquecer desta parte tão importante da história?!

Klaus que nunca foi grande, um dia foi ainda “mais pequeno”. Ou então, menor. Se durante sua infância já era suficientemente fechado às simpatias do mundo, Maria Quitéria era o oposto, tanto no passado quanto agora. A mulher falava pelos cotovelos, e não fosse essa distância de umas vinte casas na pequena e pacata Tamarindo, eles seriam um casal perfeito: ele com segredos cabeludos; ela falando pelos cotovelos.

Em um passado distante, de dez, ou vinte, ou trinta anos atrás, os pais de Maria Quitéria chegaram a sugerir que Klaus seria um bom partido, e que quem sabe no futuro, dez ou vinte ou trinta anos depois poderiam se casar.

– os opostos se atraem, Maria Quitéria. – dizia a mãe, que era casada com o pai.

Em nenhuma ocasião se ouviu que Maria Quitéria recusara a cortejar o pequeno homem. Mas não se vive apenas de planos, e em uma única coisa os dois eram i-dên-ti-cos: nenhum era bom em tomar decisões.

Quando um e outro se encontravam, ficavam horas e mais horas em silêncio, de frente, sem nem mesmo piscar. Até que aparecia alguém por perto e dizia:

– por que não vão tomar um sorvete? Está tão calor, e é verão…

E então eles começavam a suar, e seguiam até a sorveteria.

– por que não passeiam pela pracinha? Está tudo florido, e é primavera…

E lá iam eles, caminhar entre as árvores.

Numa dessas vezes, um único pingo de chuva caiu sobre o nariz de Maria Quitéria, que ficou tão nervosa e com medo de se molhar que saiu correndo, tropeçou em uma pedra e caiu no chafariz. E Klaus riu. E ela não gostou.  E voltou pra casa. E não mais saiu.

Quando cresceu, tanto em idade quanto em altura, passou a trabalhar no museu. Lá começou a viver apenas de lembranças.

Maria Quitéria encontrou nas recordações que o velho museu guardava a sete chaves a motivação para viver. Depois de um ano, parou de comer comida apenas para lembrar de lembranças. Na hora do almoço ela comia memórias; no café da tarde, comia relatos, e na janta… Ah, na hora da janta é que tinha a melhor refeição: ela comia saudades.

Talvez fosse um desperdício uma mulher tão inteligente trabalhar ali, num museu tão velho, e tão pouco visitado, onde parecia que as pessoas evitavam passar perto.

Um dia Clotilde, uma das professoras mais importantes da cidade, lhe disse:

– Devias vender essas lembranças, que são tantas… Não devias deixá-las aqui, tal qual tem feito. Perfeito seria se levasse-as a todos, cada uma de um jeito. Quem sabe pudesses oferecer-lhes em delivery!

Como já mencionado há pouco, Maria Quitéria quase nunca decidia. Mas acreditava nas sugestões: se alguém dizia, ela faria.

Encomendou do alfaiate um paletó especial, com muitos bolsos por dentro e por fora, com uma corda em varal. Cuidadosamente fotocopiou fotos e bilhetes, prendeu-os todos com pregadores e saiu em busca clientes.

Toc toc, batia nas portas:

– estou vendendo umas lembranças, gostaria de ver?

– Com certeza que sim, Maria Quitéria! – alguém respondia. – Tem alguma de um amor especial?

– tenho essa! – dizia apontando para uma foto em preto e branco, dentro do paletó.

– mas nessa foto só aparece alguém sozinho! – exclamava o cliente.

– é que aqui, se descobriu o amor de verdade só depois que um dos dois morreu…

E seguia viagem, trocando memórias por uns trocados de dinheiro. Não gastava um mísero centavo. E em seu quarto, em sua casa, naquela rua, uma pilha de moedas douradas se fazia, por onde, ao fim do dia, sobre ela repousava. Maria Quitéria era sem dúvida econômica.

– Há que gastar essa fortuna, minha filha. – Lhe dizia sua mãe, Idalina. – Quem sabe possa viajar, chamando o Heitor – (que vinha a ser o filho de Lilica e Glauber) – menino bom, bem gentil, bem melhor que o Klaus, que de você tanto riu!

Mas a moça não queria mais saber de ter um amor. Nesses casos, Maria Quitéria bem sabia ignorar as sugestões que todos lhe dessem.

– Não! – respondia.

Com a chegada do inverno, usando um delicado cachecol, saiu de casa com seu paletó, indo em busca de novos compradores. Havia ouvido dizerem que nas Estações de Trem, sempre há quem queira deixar tudo para trás, mas há quem queira levar consigo boas lembranças. E ela as tinha, em qualidade superior e bons finais.

Mas ali, naquele lugar, por algum motivo decidiu não entrar. Ficou na porta a esperar, porque haveria no desembarque do próximo trem bastante gente passando.

É engraçado que a vida tenha tantos desencontros. Na mesma estação, separados por uma parede, estavam Klaus e Maria Quitéria. Ele pra dentro. Ela pra fora. Ambos esperando um momento pra chamar de agora.

Dentro do salão, Madame Berenice, toda emperiquitada reclamava do cuidado com suas bagagens, conforme já disse. E Klaus apenas assistia. E a contadora de histórias de amor lhe explicava:

– como lhe dizia, homenzinho… ela é bastante abastada… e muito cuidadosa. Suas coisas valem ouro. Está vendo aquele quadro ali?

– Mas ali não há nada pintado. – disse Klaus.

– Se disseres isso a ela, Madame Berenice terá um ataque nervoso. Aquela é a mais nobre de todas as suas obras de arte…

– Eu repito, senhora contadora de histórias de amor. Aquilo ali é um quadro branco, sem nada pintado…

Ele não era ignorantemente desculto, tampouco insensível, afinal crescera com as emoções á flor da pele, e entre leituras em seus muitos e muitos livros em sua própria biblioteca. Então se dissesse que não via nada, não era porque não entendia de artes, e sim porque não tinha figura nenhuma naquele quadro.

Enquanto se discutia se havia ou não uma pintura, Madame Berenice percebeu o interesse entre ambos. E não titubeou:

– Vocês dois, pessoas feias e ridículas, não deviam tentar decifrar esta ma-ra-vi-lho-sa obra de arte! Não é pra gente como vocês!

– Ei, ei, ei! Como assim “não é pra gente como nós”? – respondeu a contadora de histórias de amor.

– É, como assim? – concordou Klaus!

– Muuuuuuito simples! É o tipo de obra de arte que só aqueles que têm muito dinheiro conseguem perceber! Eu mesma, com tanto dinheiro, consigo ver o que é essa pintura! Eu vejo ni-ti-da-men-te!

– É mesmo? Então nos conte o que é! – disse Klaus.

– É… é, um… hã, um…

E de repente, como num passe de mágica, o apito da estação soou, e um aviso sonoro dizia que estava parando no pátio daquele grande lugar um ônibus.

De dentro, Klaus pensou:

Mas isso aqui não era uma estação de trem?

Ao lado, a contadora de histórias de amor balbuciou:

Ônibus? Mas isso não era um aeroporto?

Lá fora, Maria Quitéria pensava:

Deve chegar bastante gente em busca de lembranças…